Contar para o paciente que ele tem uma infecção que não tem cura e que ainda é carregada de estigmas e preconceitos na sociedade. Essa é uma das funções do infectologista, médico responsável pelo tratamento e acompanhamento de pessoas que vivem com HIV.
Para Rico Vasconcelos, o profissional que trabalha nesta área tem de atuar de maneira multiprofissional sendo uma pessoa só. "Digo isso porque, além da parte técnica envolvendo o vírus, a saúde orgânica, os exames e a prescrição de medicamentos antirretrovirais, existe também uma parte psicológica, de acolhimento das angústias do paciente, e de comunicador, uma vez que precisamos transmitir muitas informações sobre HIV/Aids de modo compreensível", afirma o infectologista da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), do Núcleo de Medicina Afetiva (NuMA), e colunista de VivaBem.
Bruno Ishigami, que atua na saúde prisional de Pernambuco e na Clínica do Homem, em Recife, pela AHF Brasil (Aids Healthcare Foundation), organização global voltada à prevenção, diagnóstico e tratamento de HIV/Aids, diz que nos dois serviços têm a responsabilidade de conversar com pacientes diagnosticados com HIV.
Na maioria das vezes, recebo pessoas que já foram testadas positivamente. Meu trabalho consiste em acolher suas dores, tentar entender o que elas enxergam do diagnóstico e mostrar que ser positivo para HIV não vai mudar quem elas são em sua essência. Bruno Ishigami, infectologista
Com 30 anos de experiência como infectologista, a presidente da Sobai (Sociedade Baiana de Infectologia), Miralba Freire, afirma que o acolhimento inicial, sem julgamentos, é fundamental para estabelecer uma boa relação médico-paciente.
"É importante ser claro em relação ao diagnóstico, ouvir os questionamentos do paciente, esclarecer suas dúvidas, incentivar sua autoestima, combater o preconceito, ter uma postura otimista e tranquilizadora para uma melhor adesão e continuidade do tratamento", comenta a ex-diretora do Cedap (Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa) - Centro de Referência para Tratamento de IST/HIV/Aids no âmbito da Secretaria da Saúde da Bahia.
Vasconcelos diz que o senso comum coloca o HIV/Aids num lugar de catástrofe, sofrimento e morte. Segundo ele, essa percepção vem do imaginário criado pelos casos graves da doença no período pré-tratamento antirretroviral, nas décadas de 1980 e 1990.
Nesse sentido, ele pondera que é preciso trazer o paciente para 2022 e mostrar que hoje existem tratamentos capazes de mantê-los saudáveis e longe do adoecimento.
"É importante passar o conceito de que fazendo o acompanhamento recomendado, o vírus não fará mal para a saúde do indivíduo e nem para as pessoas com quem ele se relacionar. Quem vive com HIV em tratamento antirretroviral adequado não tem risco de transmissão do seu vírus por via sexual, ainda que tenha relações sem preservativo. Essa informação é libertadora e precisa sempre ser reforçada", alerta o infectologista da USP, que tem 18 anos de experiência na área.
Ishigami afirma que o maior cuidado que tem ao dar um diagnóstico é estar presente no momento da conversa. "Me esforço conscientemente para me conectar com o paciente. Por mais que eu dê vários diagnósticos ao longo de uma semana, é preciso lembrar que o diagnóstico é daquela pessoa que está na minha frente, é um dia de extrema importância para ela."
Ele diz que inicia as consultas perguntando se o paciente conhece alguém que vive com HIV para lembrá-lo de que é possível ter uma vida normal, e se ele tem algum medo específico em relação à infecção —com frequência o maior medo é que alguém descubra sua sorologia e que ele sofra preconceito.
"Abordo ponto a ponto para que a pessoa entenda que muitos dos medos e angústias são resultado dos estigmas e da falta de informação. Pergunto se o paciente está interessado em saber algum detalhe sobre a infecção ou se prefere um tempo para pensar e ficar sozinho. Se ele se sentir à vontade, explico como funciona o mecanismo de infecção pelo HIV, as repercussões no corpo e o que podemos fazer para um melhor controle e uma melhor convivência com o vírus. Mais importante do que essa parte técnica, é mostrar para a pessoa que ela não está sozinha e que existe uma rede dentro do sistema de saúde que está apta a cuidar dela levando em consideração sua individualidade e autonomia", reforça o médico do Recife.
Casos marcantes
O colunista de VivaBem conta que os casos mais marcantes para ele são os de mulheres gestantes que descobrem ter HIV durante o pré-natal: "Um processo que normalmente é de alegria, é atravessado por um assunto que é tratado pela sociedade com uma carga muito grande de discriminação".
Vasconcelos relembra a história de uma grávida que viveu meses de angústia e chorou em todas as consultas até depois do parto quando saiu o resultado do exame que confirmava que seu filho não havia se infectado.
"Nesses casos, além de cuidar da saúde da gestante, é preciso deixar claro que o bebê terá sua saúde assegurada e que é possível zerar a transmissão materno-infantil do HIV com o tratamento adequado", explica o médico da FMUSP.
Miralba diz que um caso recente que chamou sua atenção foi a de um adulto jovem que relatou com tristeza desconhecer a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição).
"Ele disse que se soubesse, não teria adquirido a infecção pelo HIV. Infelizmente, essa situação se repete, porque as alternativas de prevenção ainda não são conhecidas e não estão ao alcance de todos. Tanto a divulgação quanto o acesso estão aquém do desejado", lamenta a também professora da Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Trabalhando há cinco anos na área, Ishigami conta que já ouviu relatos de pacientes que sofreram preconceito no momento do diagnóstico. "Isso é péssimo em vários sentidos. É fundamental que profissionais que ocupam essa posição trabalhem os próprios preconceitos para que conduzam uma conversa leve e sem gerar nenhum sentimento de culpa no paciente."
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