[RESUMO] Diagnosticar transtornos mentais de presidentes, sem a avaliação direta de profissionais, levanta problemas éticos e pode repetir equívocos do uso político da psiquiatria no passado, argumenta psiquiatra forense.
A sanidade mental do presidente Jair Bolsonaro tem sido alvo de questionamento por parte dos parlamentares. Nesta mesma Folha, alguns psiquiatras já se pronunciaram publicamente a respeito do assunto, classificando o presidente no que é chamado de transtornos de personalidade.
Por mais que a intenção dos psiquiatras possa ser o bem público, apontando a presença de um transtorno mental a partir do comportamento observado, é preciso ponderar que um comportamento anormal não é sinônimo de doença.
Um mesmo fenômeno pode ser considerado normal ou patológico, a depender da adaptação do ser ao meio, como já apontava o filósofo Georges Canguilhem em sua tese de 1943. Isso vale também para os transtornos mentais, que exigem em sua definição algum grau de desadaptação do individuo ao ambiente.
A manifestação de psiquiatras publicamente levanta ainda uma questão ética: diagnosticar alguém a partir apenas de sua expressão pública, sem a avaliação do paciente, é vetado pelo Código de Ética Médica. Por mais que os psiquiatras tenham por hábito discutir suas impressões com colegas, o debate aberto sobre a saúde mental de alguém pode enviesar e dificultar a análise isenta dos fatos.
Também nos EUA esse tema ganhou notoriedade quando psiquiatras alegaram incapacidade do então presidente Donald Trump, a despeito da regra de Goldwater proibir o diagnóstico de figuras públicas desde 1964, quando psiquiatras interferiram nas eleições americanas.
O diagnóstico psiquiátrico está inevitavelmente associado a valores subjetivos, devido à sua dupla inserção epistemológica —é, ao mesmo tempo, parte das ciências naturais e das ciências humanas. Assim, não será surpresa se um psiquiatra liberal apontar na frieza de Trump traços de psicopatia, enquanto um psiquiatra conservador vê essa mesma característica como uma qualidade.
Um segundo aspecto que traz complexidade ao tema são as divergências entre psiquiatras quanto ao diagnostico de uma mesma pessoa. É claro que, nos transtornos mais graves, o diagnóstico tende a ter maior confiabilidade entre os pares. No entanto, os diagnósticos de transtornos de personalidade são mais passíveis de divergência, justamente porque sempre há uma dimensão moral no diagnóstico, e nesse campo determinar o que é uma personalidade normal ou doente é ainda mais impreciso.
Uma terceira questão que se impõe nesse debate é especifica à psiquiatria forense: mesmo que alguém sofra de um transtorno mental, isso não necessariamente o priva da capacidade de exercer as funções para a qual foi designado. Não basta ter a doença, é preciso que ela incapacite a pessoa para aqueles atos específicos. A maior parte das pessoas que apresentam transtorno mental estão aptas a realizar qualquer atividade, mesmo em cargos de maior expressão.
Na tentativa de regulamentar a questão, parlamentares propuseram a chamada PEC da insanidade. Segundo o projeto, o vice-presidente, apoiado por um quarto dos ministros, poderá afastar o presidente em exercício pela suspeita de transtorno mental.
Estranhamente, não há previsão de uma avaliação psiquiátrica que justifique esse afastamento no dispositivo, embora seja evidente que um vice-presidente não seria alguém capaz de avaliar a sanidade mental de um presidente. O próprio Código Civil prevê, desde 2015, a necessidade uma avaliação profissional multidisciplinar diante da suspeita de um transtorno mental, e nesse caso não poderia ser diferente.
Vale ressaltar, porém, que, caso fosse avaliado, a eventual ausência de um transtorno mental não seria uma carta-branca para o presidente fazer o que bem entender. Ao contrário, validaria sua responsabilidade pelas decisões tomadas durante o mandato.
Não se pode confundir, nesse contexto, capacidade com competência. A primeira é uma questão médica, a segunda uma questão jurídica. A lei 1.079, de 1950, estabelece critérios para o impeachment em caso de crimes de responsabilidade e, portanto, o presidente deverá responder caso seja comprovado que houve crime.
A complexidade do diagnóstico psiquiátrico não pode prescindir de um rigor psicopatológico que considere o contexto histórico em que se apresenta o indivíduo. É preciso cuidado para não incorrer na psiquiatrização do comportamento, ou seja, traduzir todos os atos anormais ou mesmo imorais como sinônimos de transtorno mental.
Quando inseridos no debate público, os psiquiatras não podem ignorar os erros históricos já cometidos pelo uso político da psiquiatria, à esquerda ou à direita, e que até hoje traz estigmas à especialidade e afasta os pacientes que dela precisam.
Psiquiatras devem se pronunciar sobre a saúde mental de Bolsonaro? - Folha de S.Paulo
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